Raquel_Pereira
15-07-04, 04:54 PM
O Segredo da Mãe do Dr. Carson
Sua mãe não sabia ler, mas tinha certeza de que os livros o levariam a algum lugar
Por BEN CARSON
O ano era o de 1961 e eu estava na 5ª série. Minhas notas eram péssimas, mas eu não tinha consciência suficiente para me importar com isso.
Papai já tinha morrido havia muito tempo. Meu irmão mais velho, Curtis, e eu morávamos com mamãe numa casa de cômodos encardida em Detroit, num daqueles bairros que se podiam chamar educadamente de "áridos". Nossa casa era apertada e com poucos móveis, mas era limpa e não faltava comida na mesa.
Naquela ignorância em que as crianças se isolam, tínhamos uma idéia muito vaga das dificuldades que nossa mãe enfrentava para manter tudo em ordem, trabalhando como doméstica em três empregos.
Nosso mundo resumia-se em ir à escola, depois jogar futebol ou basquete, "atacar as maçãs" do quintal do vizinho, às vezes atirar em ratos com uma espingarda de chumbinho, voltar para casa ao escurecer e assistir à televisão. Nem precisávamos do guia de programação da TV. Meu irmão e eu sabíamos sempre o que estava passando em todos os canais.
A sonoplastia de nossas vidas era o tiroteio e os cascos dos cavalos dos filmes de faroeste, as risadas do seriado I Love Lucy e os jingles familiares e insistentes dos comerciais. Ficávamos estirados na cama de mamãe com os olhos grudados na tela por horas a fio.
Um dia, porém, mamãe mudou nossa vida para sempre. Desligou o aparelho de TV. Minhas notas ruins na escola foram o motivo. Nossa mãe, Sonya Carson, só tinha estudado até a 3ª série, mas era muito mais inteligente e esperta do que nós, garotos, sabíamos na época. Ela havia notado algo nas casas onde fazia faxina: livros. Então um dia chegou em casa, desligou a televisão e nos explicou que seus filhos iam ser alguém na vida.
"Vocês vão ler dois livros por semana," avisou. "E vão me escrever um relatório sobre o que leram."
Nós resmungamos e reclamamos que isso era uma injustiça, que todas as outras crianças viam televisão. Como as queixas não tiveram resultado, achamos que em poucos dias ela esqueceria o assunto. Além do mais, não tínhamos livros em casa, a não ser sua Bíblia.
Mas mamãe explicou que iríamos até os livros: "Vou levar vocês até a biblioteca."
E assim lá foram aqueles dois meninos desconsolados e azedos, seguindo a mãe, conhecer a Biblioteca Pública de Detroit. Dei uma volta relutante pela seção de livros infantis. Eu adorava animais e, ao ver alguns volumes que pareciam falar sobre eles, comecei a folheá-los.
O primeiro livro que li era sobre castores e como eles viviam e construíam seus diques. Pela primeira vez na vida me vi perdido em outro mundo. Nenhum programa de televisão jamais me levara tão longe do ambiente em que eu vivia como essa visita verbal a um riacho frio numa floresta, onde esses animais construíam suas casas.
Não me ocorreu na época, mas a experiência era bem diferente da televisão.
As imagens se formavam em minha mente, e não diante dos meus olhos, e eu podia revê-las quantas vezes quisesse; bastava virar uma página.
Não demorou muito e eu passei a esperar com ansiedade a hora de visitar o santuário silencioso do meu outro mundo. Descobri os dinossauros. Descobri a diferença entre répteis e mamíferos. E descobri algo muito mais importante: não só eu gostava de ler, como era capaz de absorver mais informações - e mais rápido - por meio das palavras impressas do que de sons ou imagens.
Passei dos animais às plantas. Depois de devorar todos os livros que encontrei sobre plantas, voltei-me para as pedras. Perambulava pelos trilhos do trem, enchia uma caixa com pedras, carregava-as para casa e tentava identificá-las com a ajuda de um livro de geologia.
Entre as capas de todos esses livros, havia mundos inteiros, e neles eu era livre para ir a qualquer lugar. No caminho aconteceu algo engraçado: comecei a ganhar conhecimento. Os professores também perceberam isso. Cheguei a um ponto em que mal podia esperar a hora de voltar para casa e para meus livros. Curtis e eu não esperávamos mais que mamãe terminasse o trabalho para nos levar à biblioteca. Encontramos um atalho. Descíamos pelos trilhos do trem, às vezes pegando carona num comboio. Então saltávamos e escorregávamos por uma pequena colina para chegar até os livros.
Quanto à televisão, mamãe acabou cedendo - um pouco. Podíamos ver TV algumas horas por semana. Mas a telinha não era mais um mundo para nós, apenas uma recreação ocasional. Só anos mais tarde é que percebemos que nossa mãe era analfabeta e não podia ler nem aqueles curtos relatórios que escrevíamos sobre os livros todas as semanas. Entretanto, no fim ela não só aprendeu a ler, como continuou estudando até conseguir o diploma do curso básico.
Hoje Curtis é engenheiro e eu sou chefe do departamento de neurocirurgia pediátrica do Centro Infantil do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore. As vezes ainda não acredito no rumo que minha vida tomou: de aluno fraco e indiferente numa escola pública de Detroit a bolsista da Universidade de Yale, aluno da Escola de Medicina da Universidade do Michigan e finalmente esta posição, que me transporta pelo mundo inteiro ensinando e realizando
cirurgias delicadas.
Mas sei quando essa viagem começou: no dia em que mamãe desligou o aparelho de televisão e nos levou até a biblioteca. --
Publicado pela revista Seleções, maio de 2001, págs. 18 a 22.
Sua mãe não sabia ler, mas tinha certeza de que os livros o levariam a algum lugar
Por BEN CARSON
O ano era o de 1961 e eu estava na 5ª série. Minhas notas eram péssimas, mas eu não tinha consciência suficiente para me importar com isso.
Papai já tinha morrido havia muito tempo. Meu irmão mais velho, Curtis, e eu morávamos com mamãe numa casa de cômodos encardida em Detroit, num daqueles bairros que se podiam chamar educadamente de "áridos". Nossa casa era apertada e com poucos móveis, mas era limpa e não faltava comida na mesa.
Naquela ignorância em que as crianças se isolam, tínhamos uma idéia muito vaga das dificuldades que nossa mãe enfrentava para manter tudo em ordem, trabalhando como doméstica em três empregos.
Nosso mundo resumia-se em ir à escola, depois jogar futebol ou basquete, "atacar as maçãs" do quintal do vizinho, às vezes atirar em ratos com uma espingarda de chumbinho, voltar para casa ao escurecer e assistir à televisão. Nem precisávamos do guia de programação da TV. Meu irmão e eu sabíamos sempre o que estava passando em todos os canais.
A sonoplastia de nossas vidas era o tiroteio e os cascos dos cavalos dos filmes de faroeste, as risadas do seriado I Love Lucy e os jingles familiares e insistentes dos comerciais. Ficávamos estirados na cama de mamãe com os olhos grudados na tela por horas a fio.
Um dia, porém, mamãe mudou nossa vida para sempre. Desligou o aparelho de TV. Minhas notas ruins na escola foram o motivo. Nossa mãe, Sonya Carson, só tinha estudado até a 3ª série, mas era muito mais inteligente e esperta do que nós, garotos, sabíamos na época. Ela havia notado algo nas casas onde fazia faxina: livros. Então um dia chegou em casa, desligou a televisão e nos explicou que seus filhos iam ser alguém na vida.
"Vocês vão ler dois livros por semana," avisou. "E vão me escrever um relatório sobre o que leram."
Nós resmungamos e reclamamos que isso era uma injustiça, que todas as outras crianças viam televisão. Como as queixas não tiveram resultado, achamos que em poucos dias ela esqueceria o assunto. Além do mais, não tínhamos livros em casa, a não ser sua Bíblia.
Mas mamãe explicou que iríamos até os livros: "Vou levar vocês até a biblioteca."
E assim lá foram aqueles dois meninos desconsolados e azedos, seguindo a mãe, conhecer a Biblioteca Pública de Detroit. Dei uma volta relutante pela seção de livros infantis. Eu adorava animais e, ao ver alguns volumes que pareciam falar sobre eles, comecei a folheá-los.
O primeiro livro que li era sobre castores e como eles viviam e construíam seus diques. Pela primeira vez na vida me vi perdido em outro mundo. Nenhum programa de televisão jamais me levara tão longe do ambiente em que eu vivia como essa visita verbal a um riacho frio numa floresta, onde esses animais construíam suas casas.
Não me ocorreu na época, mas a experiência era bem diferente da televisão.
As imagens se formavam em minha mente, e não diante dos meus olhos, e eu podia revê-las quantas vezes quisesse; bastava virar uma página.
Não demorou muito e eu passei a esperar com ansiedade a hora de visitar o santuário silencioso do meu outro mundo. Descobri os dinossauros. Descobri a diferença entre répteis e mamíferos. E descobri algo muito mais importante: não só eu gostava de ler, como era capaz de absorver mais informações - e mais rápido - por meio das palavras impressas do que de sons ou imagens.
Passei dos animais às plantas. Depois de devorar todos os livros que encontrei sobre plantas, voltei-me para as pedras. Perambulava pelos trilhos do trem, enchia uma caixa com pedras, carregava-as para casa e tentava identificá-las com a ajuda de um livro de geologia.
Entre as capas de todos esses livros, havia mundos inteiros, e neles eu era livre para ir a qualquer lugar. No caminho aconteceu algo engraçado: comecei a ganhar conhecimento. Os professores também perceberam isso. Cheguei a um ponto em que mal podia esperar a hora de voltar para casa e para meus livros. Curtis e eu não esperávamos mais que mamãe terminasse o trabalho para nos levar à biblioteca. Encontramos um atalho. Descíamos pelos trilhos do trem, às vezes pegando carona num comboio. Então saltávamos e escorregávamos por uma pequena colina para chegar até os livros.
Quanto à televisão, mamãe acabou cedendo - um pouco. Podíamos ver TV algumas horas por semana. Mas a telinha não era mais um mundo para nós, apenas uma recreação ocasional. Só anos mais tarde é que percebemos que nossa mãe era analfabeta e não podia ler nem aqueles curtos relatórios que escrevíamos sobre os livros todas as semanas. Entretanto, no fim ela não só aprendeu a ler, como continuou estudando até conseguir o diploma do curso básico.
Hoje Curtis é engenheiro e eu sou chefe do departamento de neurocirurgia pediátrica do Centro Infantil do Hospital Johns Hopkins, em Baltimore. As vezes ainda não acredito no rumo que minha vida tomou: de aluno fraco e indiferente numa escola pública de Detroit a bolsista da Universidade de Yale, aluno da Escola de Medicina da Universidade do Michigan e finalmente esta posição, que me transporta pelo mundo inteiro ensinando e realizando
cirurgias delicadas.
Mas sei quando essa viagem começou: no dia em que mamãe desligou o aparelho de televisão e nos levou até a biblioteca. --
Publicado pela revista Seleções, maio de 2001, págs. 18 a 22.